Quando um leigo me pergunta sobre o objeto da minha investigação, nem sempre é fácil de explicar numa frase. Na verdade, quem trabalha em biodiversidade trabalha com sistemas complexos. Logo, para entender estes sistemas, para os modelar, para projetar dinâmicas futuras, são diversas as ramificações por onde se estende a investigação. Consciente da dificuldade em sintetizar a diversidade muitos artigos científicos que liderei, ou que participei como colaborador, resolvi fazer um exercício: são quase 25 anos de trabalho de investigação resumidos num artigo de blog que acompanho com alguns vídeos e fotografias. Não é uma arte final. Irei atualizando à medida que tenha tempo e novos elementos para acrescentar. Talvez não sirva para os leigos mas fica o testemunho profissional, com alguns apontamentos pessoais, que poderá servir para inspirar estudantes que se interessem em embarcar em futuras aventuras na área da ecologia e da biogeografia.

Das origens e motivações

Há sempre um começo. Escolho referir uma inquietação que me acompanhou na minha juventude académica, enquanto finalista de Licenciatura em Geografia na Univerdidade de Aberdeen (no âmbito do programa ERASMUS com a Universidade Nova de Lisboa) e depois estudante de Mestrado em Conservação na Universidade College de Londres (Figura 1): o problema da Arca de Noé.

Dada a magnitude das ameaças que recaem sobre a biodiversidade e tendo nós que fazer escolhas sobre o que proteger, ou seja onde alocar prioridades de investimento na conservação, que critérios deverão presidir as nossas escolhas? O nosso papel, nesta Era do Antropoceno, é de facto análogo à alegoria da Arca de Noé. Noé teria recebido ordens Divinas de escolher um casal de cada espécie de animal para colocar na arca e assim salvá-los do diluvio. Na realidade, nem todas as espécies caberiam na arca pelo que seria forçado a fazer escolhas. Da mesma forma como as fazemos quando investimos milhões de euros a proteger uma espécie carismática em detrimento de outra menos carismática, ou quando decidimos (por ação ou inação) perder biodiversidade a troco de maior área de produção de alimento. Há, evidentemente uma dimensão do problema que é filosófica, ética e política mas também há questões do foro científico. Para responder a essas perguntas, fui desenrolando um extenso novelo de matérias científicas que permitem iluminar a resposta. E assim me envolvi na investigação que descrevo abaixo e que não antevejo fim pois o novelo é mais longo do que a vida de um homem ou de uma mulher.

Figura 1 – Turma de Mestrado em Conservação na Universidade College de Londres (1995). Miguel B. Araújo (4º no topo à esquerda). Os coordenadores e principais inspiradores do curso: último no topo à direita (Barrie Goldsmith), 4º desde a direita em baixo (Brian Wood).

Da investigação passada

Nas últimas duas décadas, a minha investigação e dos meus colaboradores no laboratório tem-se centrado em três questões estruturantes e que confluem no sentido de dar resposta ao problema da Arca de Noé referida acima:

  • Como afectaram as alterações climáticas do passado a biodiversidade?
  • Como afectarão as alterações climáticas e sociais em curso a biodiversidade do futuro?
  • Como poderá ser a biodiversidade conservada tendo em conta as trajetórias climáticas e sociais projetadas?

As três perguntas são parte integrante da agenda internacional de investigação em biogeografia. Tradicionalmente, a primeira pergunta inscreve-se na subárea da biogeografia histórica, a segunda na subárea da biogeografia ecológica e a terceira na subárea da biogeografia da conservação (subárea cuja criação foi inicialmente pr0posta por um conjunto de académicos da Universidade de Oxford, onde me inluia, através de um artigo no Journal of Biogeography, Whittaker, Araújo et al. 2005).

No laboratório, a investigação em biogeografia histórica tem sido desenvolvida primordialmente em parceria com outras equipas focados no estudo da paleoecologia (e.g., Philosophical Transactions of the Royal Society London B, Willis, Araújo et al. 2007). O enfoque tem sido usar séries históricas (climáticas, fósseis, filogenias, ADN antigo) para validar as projeções de modelos e compreender a natureza dos mecanismos que provocaram alterações de distribuição de espécies no passado. Um bom exemplo desta linha de trabalho é o artigo que publicámos na PLoS Biology que procurou compreender os mecanismos de extinção do mamute na Eurásia (Nogués-Bravo, Rodriguez et al. 2008), ou o artigo que publicámos na Proceedings of the Royal Society London B (Metcalf, Prost et al. 2014) que procurou destrinçar diferentes mecanismos ecológicos e evolutivos subjacentes a alterações na distribuição do bisonte na América do Norte.

Outros exemplos incluem o estudo dos efeitos das alterações climáticas passadas na riqueza de espécies. Por exemplo, usando séries climáticas passadas para medir o sinal de climas quaternários na distribuição da riqueza de répteis e anfíbios na Europa (Ecography, Araújo, Nogués-Bravo et al. 2007), ou o uso do registo fóssil (Global Ecology and Biogeography, Romdal, Araújo et al. 2012) e/ou filogenias (Ecography, Hof et al. 2010; Nature Communications, Bennet, Sunday et al. 2021) para entender o sinal deixado por climas passados na riqueza e nas preferências climáticas atuais das espécies.

A segunda e terceira perguntas têm formado parte do core business da minha equipa. Concretamente, no âmbito da segunda pergunta, fomos pioneiros no desenvolvimento e uso de modelos empíricos de distribuição de espécies (e.g., Journal of Biogeography, Araújo & Guisan, 2006) para projetar os efeitos das alterações climáticas na biodiversidade (e.g. Science, Araújo & Rahbek 2006) e fomos os primeiros a detectar um elevado nível de incerteza associado ao uso de diferentes models (e.g., Nature, Thuiller, Araújo et al. 2004; Journal of Biogeography, Pearson, Thuiller et al. 2006; Journal of Biogeography, Araújo et al. 2006). Desenvolvimentos metodológicos nesta área permitiram fazer avaliações detalhadas, entre outras, sobre o efeito das alterações climáticas no potencial evolutivo dos vertebrados terrestres na Europa quando expostos a cenários de alterações climáticas (Nature, Thuiller et al. 2011), assim como explorar os efeitos combinados das ameaças climáticas, de uso de solo e do fungo Chytridiomycota que afecta as populações de anfíbios globalmente (Nature, Hof, Araújo et al. 2011).

Inovámos ainda no desenvolvimento e uso de modelos híbridos (e.g., Biology Letters, Keith, Akçakaya et al. 2006), que combinam  elementos empíricos com elementos teóricos e/ou mecanicistas, para estudar o efeito de alterações globais na dinamica espacial da abundância e distribuição de espécies. Uma investigação publicada em diversas revistas onde participei como autor sénior, designadamente a Nature Climate Change (que desenvolve cenários climáticos para o Lince Ibérico com vista a auxiliar as estratégias de reintrodução de individuos criados em cativeiro), Biology Letters e Global Change Biology (Fordham, Akcakaya et al. 2013; Brook, Akçakaya et al. 2009; Fordham, Akçakaya et al. 2011).

Numa abordagem diametralmente oposta, i.e, partindo do geral para o particular, explorámos as relações existentes entre dinâmicas climáticas e distribuições de espécies, na ótica de usar as primeiras como indicadoras das segundas. Esta investigação foi desenvolvida inicialmente por um artigo conceptual e de revisão que publicámos na Science e cuja primeira autora foi minha aluna de doutoramento na Universidade de Évora e Universidade de Copenhaga (Garcia, Cabeza et al. 2014) e cujos principios foram testados empiricamente, com relativo sucesso, na revista Global Ecology and Biogeography (Garcia, Cabeza et al. 2016) tendo, anteriormente, sido testados, com igual sucesso, pelo então pós-doc na minha equipa David Nogués-Bravo (agora Catedrático na Universidade de Copenhaga), para prever extinções Quaternárias entre grandes mamíferos (Evolution, Nogués-Bravo, Ohlemüller et al. 2010).

Finalmente, numa das contribuições com maior impacto na minha carreira, introduzimos o conceito de ensemble forecasting em ecologia num artigo abundantemente citado na importante revista Trends in Ecology and Evolution (Araújo and New 2007) e cuja fiabilidade conseguimos testar com dados independentes, oriundos de séries temporais históricas, e publicadas em revistas como a Global Change Biology and Nature Climate Change, entre outras (Araújo, Pearson et al. 2005, Faurby and Araújo 2018) e com análises detalhadas de incerteza em revistas como a Ecography, Ecological Modelling e Global Change Biology (Diniz-Filho, Bini et al. 2009, Nenzén and Araújo 2011, Garcia, Burgess et al. 2012).

O culminar destes mais de 20 anos de investigação em modelação de distribuição de espécies encontra-se sintetizado em três trabalhos seminais. Por um lado o livro de texto publicado na série clássica de Monographs in Population Biology da editorial Princeton University Press, onde proporcionamos uma síntese da teoria dos nichos ecológicos subjacente aos modelos de distribuição de espécies (Peterson et al. 2011), um artigo na revista Ecology (Araújo and Peterson 2012) onde discutimos os limites da teoria do nicho e dos respetivos modelos no quadro de diferentes tipos de inferências aplicadas e o artigo na Science Advances (Araújo, Anderson et al. 2019) em que, finalmente, se estabelece um consenso entre vários especialistas da área sobre os procedimentos e padrões que deverão ser adotados no uso de dados e metodologias para construção de modelos empíricos de distribuição de espécies em estudos no interface da ciência e política aplicada à biodiversidade (Figura 2; ver vídeo divugativo sobre artigo).

Figura 2 – Utilização de estudos científicos no estabelecimento de avaliações sobre o estado da biodiversidade (ou clima) emorganizações internacionais como o IPBES (ou IPCC). As caixas com fundo verde indicam os passos adicionais sugeridos no artigo Araújo et a. 2019 da Science Advances. 

Os modelos de distribuição de espécies baseam-se em análises estatísticas que relacionam a biogeografia das espécies e o ambiente que as rodeia, nomeadamente o clima. As relação causais entre espécies e clima são, assim, estimadas de forma indireta e, como tal, são propensas a ruído e erro. A máxima “rubbish in rubbish out” aplica-se sem dó nem piedade (Proceedings of the National Academy of Sciences, Araújo, Thuiller, Yoccoz 2009).

Ainda no quadro do estudo da compreensão dos fatores limitantes da distribuição das espécies, desenvolvemos projetos de investigação para medir os limites termo-fisiológicos das espécies em contexto experimental. Salientamos um estudo, integrado na Tese de Doutoramento do Francisco Ferri, estudante do Museu Nacional de Ciências Naturais de Madrid em colaboração com a Universidade Pontífica Católica do Chile, que envolveu medições sobre fisiologia termal de dezenas de lagartos (género Lyolaemus) num gradiente latitudinal e altitudinal do Chile: desde os territórios gelados de “Tierra del Fuego”, no sul, aos territórios sub-tropicais na fronteira com o Peru, no norte; e desde zonas costeiras próximas do nível do mar a zonas de altitude elevada nos “salares”dos Andes (Figura 3a, b, c).

Figura 3 – a) exemplo de paisagem nos patamares de elevação intermédia no Chile central; b) lagarto do genero Lyolaemus, grupo usado para o estudo; 3) Araújo no salar de pedernales (>3300 m de elevação) de visita a um dos locais onde o estudante de doutoramento Francisco Ferri realizou as amostragens.

Um dos resultados mais importantes deste estudo foi o que publicámos na prestigiada Ecology Letters com o sugestivo título de “Heat freezes niche evolution” (Araújo, Ferri et al. 2013) que demonstrou haver 1) uma grande discrepância entre inferências sobre limites de tolerância térmica das espécies recorrendo a abordagens estatísticas e fisiológicas; 2) haver uma tendência para a conservação do nicho térmico a nível de temperaturas ótimas e máximas críticas (i.e., as espécies têm, regra geral, as mesmas preferências e limites críticos em relação à temperatura); 3) haver bastante discrepância entre espécies no que diz respeito o limite térmico crítico mínimo, o que sugere respostas adaptativas fortes ao frio (ver vídeo abaixo). A generalidade e consequências destes resultados foram objeto de avaliação posterior usando os lagartos Ibéricos como modelo de estudo e tiveram como protagonistas na equipa os investigadores pós-doutorais Camila Monastério e Salvador Herrando-Pérez. Estes trabalhos revelaram haver uma variabilidade apreciável de tolerâncias térmicas máximas entre populações da mesma espécies (Functional Ecology, Herrando-Pérez, Monasterio et al. 2019) e ser importante considerar adicionalmente a disponibilidade hídrica nestes estudos (Basic and Applied Ecology, Herrando-Pérez, Belliure et al. 2020), pois estabelecem relação não lineares com a temperatura.

No âmbito da terceira pergunta, que foi o tópico da minha tese de doutoramento, fomos pioneiros na introdução de modelos de distribuição de espécies no planeamento sistemático de áreas para conservação da biodiversidade. Destacamos os artigos publicados na Biological Conservation (Araújo & Williams 2000), que propõem o quadro conceptual para o uso destes modelos em conservação, ou os artigos Proceedings of the Royal Society London B (Araújo et al. 2002) e Ecological Modeling and Assessment (Williams & Araújo 2002) que desenvolvem o conceito de que a probabilidade de persistência poderia ser a moeda de troca (“currency“) em exercícios de priorização na área da conservação. O valor destas abordagens e sua eficácia foram demonstrados recorrendo a séries temporais de aves no Reino Unido (Proceedings of the Royal Society London B., Araújo et al. 2002).

Mais tarde notámos que as alterações climáticas poderiam alterar por completo as expectativas de persistência das espécies em espaços naturais protegidos e que seria necessário incorporar esta dimensão no planeamento para a conservação da biodiversidade (Global Change Biology, Araújo, Cabeza et al. 2004; Frontiers in Ecology and Evolution, Hannah, Midgley et al. 2007). Para o efeito desenvolvemos novas abordagens metodológicas (Conservation Biology, e.g., Williams, Hannah et al. 2005; Methods in Ecology and Evolution, Alagador, Cerdeira et al. 2016) que permitem acautelar, em sistemas de áreas protegidas, as necessidades de dispersão das espécies em cenários de mudança climática (ver resumo numa linguagem amigável num capítulo de livro da Oxford University Press; Araújo 2009). Esta linha de investigação deu origem a diversos estudos dos quais resultou uma encomenda do Conselho da Europa para preparação de um relatório sobre áreas protegidas e alterações climáticas (Araújo 2009) assim como a primeira avaliação pan-europeia do impacto das alterações climáticas na biodiversidade dos espaços naturais protegidos, como sejam as áreas protegidas e as áreas da Rede Natura 2000 (Ecology Letters, Araújo, Alagador et al. 2011).

A falta de utilização destas abordagens dinâmicas no planeamento, ordenamento e gestão de áreas protegidas foi recentemente assinalada, de forma crítica, num artigo do prestigiado magazine científico britânico New Scientist que citou abundantemente o nosso trabalho (edição de 4 de Janeiro de 2020). É patente a falta de apetite das organizações responsáveis pela conservação da biodiversidade por incorporar a dimensão “alterações climáticas” nas práticas correntes de planeamento, ordenamento e gestão para a conservação. Esta aparente contradição entre o que se predica para outros e o que se pratica para si próprio explica-se, parcialmente, por considerações financeiras (as políticas de adaptação são caras e o sector da conservação é cronicamente subfinanciado) mas também político (implica considerar incrementos na área destinada à conservação o que comporta inerentes riscos de conflitualidade social económica). Os desafios futuros nesta matéria são, portanto, menos de cariz científico—onde os progressos das últimas décadas foram tão notáveis como subutilizados—e mais na área da transferência de conhecimento e da tecnologia, assim como no domínio normativo e dos interfaces entre a ciência e a política (no sentido de policy; uma área onde pretendemos contribuir, em Portugal, por via de um contrato recentemente aprovado com a administração central).

Da investigação futura

Não obstante os progressos científicos realizados pela minha equipa e por outros investigadores, na área da modelação da distribuição de espécies, há limites quanto ao que se possa alcançar no que diz respeito a modelação empírica de atributos biológicos, como sejam as espécies. Para dar uma ideia, a modelação da biodiversidade é incomparavelmente mais complexa que a modelação da propagação de uma epidemia, como seja o SARS-CoV2: são mais atributos (espécies), maior número de interacções; maior variedade de condicionantes abióticos. No caso do Coronavirus, fomos os primeiros a usar o tipo de modelação estatística que desenvolvemos no laboratório e a referir uma provável sazonalidade na facilidade de propagação do mesmo (MedRxiv, Araújo & Naimi 2020); uma possibilidade questionada, na altura, de forma severa por alguns investigadores mas que, de momento, parece ser plausível e permitir, quando considerada nos modelos, fazer projeções de trajetórias gerais de médio prazo (e não de números de infeções) com maior acerto que modelos mecanicistas, mais complexos, que são extremamente sensíveis a pequenas variações nos parametros usados e que, frequentemente, não consideram a dimensão de sazonalidade (ver discussão sobre o uso de diferentes abordagens para modelar a epidemia de SARS-CoV-2 na Nature Ecology & Evolution, Araújo et al. 2020). Modelar a biodiversidade é, portanto, uma tarefa gigantesca e ameaçada por enormes fontes de incerteza. Basta considerarmos que a maior parte dos modelos de propagação de um único atributo biológico, como o SARS-CoV-2, tiveram acertos muito baixos quando comparados com a realidade.

Apesar de serem apelativas, por incorporarem o melhor conhecimento disponível sobre mecanismos causais, as abordagens teóricas e mecanicistas possuem algumas limitações particulares: na maior parte dos casos é praticamente impossível transferir inferências através de escalas de organização espácio-temporal e biológica. Isto é, um modelo mecanicista construído para uma determinada espécie, numa dada região e contexto histórico, por exemplo, usando equações de Lotka & Volterra (ou os famosos modelos SIR ou SIER para modelação da propagação de doenças infecto-contagiosas), dificilmente é transferível para outras regiões, tempos e espécies, muito menos para níveis superiores de organização biológica como sejam os habitats e/ou ecossistemas. Por este motivo, as comparações que realizámos entre modelos estatísticos, mecanicistas e híbridos, testados com dados independentes de séries temporais, revelaram o poder extraordinário dos modelos estatísticos na sua capacidade de se transferir para tempos diferentes dos que foram usados para a sua calibração (Global Change Biology; Fordham, Bertelsmeier et al. 2017). Ou seja, quando se trata de projeções ou transferências de modelos em situações diferentes daquelas que são usadas para os construir, a simplicidade (“parcimónia” no jargão dos modeladores) pode trazer vantagens face à complicação (que é diferente de complexidade; ver abaixo) (Ecological Modelling; García Callejas & Araújo, 2016).

A raiz do problema reside na complexidade dos sistemas biológicos e na interação destes com outros sistemas complexos, como sejam o sistema climático e social. As abordagens de modelação desenvolvidas até à data centram-se, primordialmente, no atributo, isto é, a espécie e a sua distribuição em relação a aspetos do clima e de outras variáveis ambientais. Abordagens mais avançadas de modelação bioclimática procuram estudar as consequências das interações entre atributos, as chamadas interações biológicas (uma linha de investigação iniciada por Araújo and Luoto 2007, num artigo publicado na Global Ecology and Biogeography). Porém o ruído e incerteza podem propagar-se de forma descontrolada quando procuramos nutrir os modelos de detalhes para os quais temos pouca informação.

Um dos problemas inevitáveis quando se procura entender o papel das interações bióticas nos mecanismos de distribuição de espécies é que nos falta conhecimento sobre essas interações. Se o nosso conhecimento é incompleto sobre o catálogo de espécies existentes no planeta e suas distribuições, ainda mais incompleto é sobre as interações que se estabelecem entre os diferentes organismos vivos. Podemos tentar inferir essas interações, com um método proposto por uma equipa do meu laboratório e colaboradores (Trends in Ecology and Evolution, Morales Castilla, Matias et al. 2015) mas não deixam de ser inferências sobre redes de interação, o que designámos de “meta-redes”.

No entanto, talvez exista uma luz no fundo do túnel que se chama complexidade. Uma das propriedades de qualquer sistema complexo é que o resultado das múltiplas ações e reações que nele se produzem, envolvendo diferentes componentes do sistema, dão origem a fenómenos que são mais do que o resultado da soma das partes. Quando nos referimos a estes fenómenos é frequentemente invocado o termo de propriedade emergente. Ou seja, qualquer modelo que, num dado sistema complexo, incida sobre um determinado atributo biológico, será incapaz de determinar o resultado, tanto ao nível do atributo como do sistema, das múltiplas interações que ocorrem entre atributos. No entanto, poderá ser capaz de modelar o resultado emergente da interação entre atributos.

Esta reflexão conduz-nos à necessidade de usar a teoria de sistemas complexos, em geral, e teoria de redes, em particular, para estudar os efeitos das alterações climáticas (ou ambientais lato sensu) nos sistemas vivos. Um dos primeiros artigos de cariz biogeográfico que procura estabelecer explicitamente estas pontes foi publicado na revista Ecography (Araújo, Rozenfeld et al. 2011), seguido de vários desenvolvimentos conceptuais e metodológicos na Ecography, Theoretical Ecology, e Ecology (Araújo and Rozenfeld 2013, Cazelles, Araújo et al. 2015, García-Callejas, Molowny-Horas et al. 2018). No entanto, só recentemente publicámos um artigo, na revista Nature Communications (Mendoza and Araújo 2019), que abre perspetivas inovadoras para a integração da teoria dos sistemas complexos na análise de padrões biogeográficos (ver vídeo abaixo).

Em concreto, descobrimos a existência de relações estreitas entre as características climáticas de uma determinada região e a estrutura de redes de interação trófica que lá ocorrem, utilizando distribuições e informação sobre preferências alimentares de pouco mais de 500 mamíferos de grande porte. Estas relações estreitas entre clima e estruturas tróficas determinam que em climas climas análogos se encontram estruturas tróficas semelhantes, independentemente da história evolutiva de cada uma das faunas. Ou seja, um região tropical húmida na América do Sul teria uma estrutura trófica semelhante às que se encontram na região equatorial de África e do Sudeste Asiático (Figura 4).

Figura 4 – Seis estruturas tróficas identificadas para os mamíferos com mais de 3 kg a nível mundial: boreal, temperado, semi-árido, depauperado, tropical sazonal, tropical húmido. Climas semelhantes geram estruturas tróficas semelhantes independentemente do percurso evolutivo das diferentes faunas. Figura elaborada pelo ilustrador científico português Pedro Salgado.

Resultados ainda não publicados pela minha equipa revelam que as descobertas efetuadas no artigo acima citado são genéricas, reproduzindo-se numa análise de distribuições e relações tróficas envolvendo mais de 20.000 espécies de mamíferos e aves. Nesta análise, concluímos que uma única variável ambiental permite explicar o padrão trófico das comunidades de aves e mamíferos: a produtividade primária bruta dos ecossistemas (i.e., a quantidade de energia sintetizada pelas plantas). Dito de outra forma, a quantidade de energia disponível nos ecossistemas, determina o tipo de relações tróficas que nele são possíveis. Acresce que existe uma evidente convergência evolutiva entre as redes ecológicas que ocorrem em regiões diferentes com disponibilidades energéticas semelhantes.

Um fenómeno conhecido a nível de espécie mas ainda não documentado de forma sistemática ao nível das propriedades emergentes das comunidades.

Se estes resultados forem confirmados em diferentes escalas geográficas, temporais e de organização biológica, algo que a minha equipa está empenhada em investigar nos próximos anos, estamos, por um lado, a justificar a consolidação de uma nova linha de investigação, ou subdisciplina da biogeografia que poderíamos apelidar biogeografia das interações biológicas, assim com a abrir portas que permitam um salto qualitativo substancial na modelação ecológica das comunidades caracterizadas em função de atributos funcionais (tróficos) dos organismos nelas presentes.

A ideia não é completamente inovadora dado que, em ecologia vegetal, onde a relação direta com o clima é evidente, a modelação de unidades funcionais tem vindo a ser realizada desde os trabalhos pioneiros do chamado eixo de LPJ (Lund, Potsdam, Jena) de Martin Sykes, Wolfgang Cramer e Colin Prentice (inspirados no trabalho de clássicos como Augustin Pyrame de Candolle, Alexandre Von Humboldt e Robert H. Whittaker). No entanto, a abordagem, nunca tinha sido testada com sucesso em comunidades animais havendo mesmo dúvidas se seria possível (debates privados entre Miguel B. Araújo, autor deste texto, e os investigadores Sykes, Cramer e Prentice referidos acima). Outro artigo recente na Nature Ecology and Evolution, cuja participação foi feita no âmbito de uma colaboração em curso com o investigador Canadiano, Dominique Gravel, realizado com peixes em meio marinho, produz resultados convergentes ainda que com abordagens diferentes (Albouy, Archambault et al. 2019).

Os próximos anos serão, pois, anos de continuidade com a linha de investigação exposta e que visa a incorporação dos pressupostos da teoria de sistemas complexos no pensamento e teorias biogeográficas. Seguindo a abordagem que tenho vindo a seguir durante a minha carreira de investigação os passos a seguir implicam:

  • aprofundar as bases teóricas que ligam os sistemas complexos à biogeografia;
  • desenvolver modelos que representem as hipóteses teóricas de partida;
  • testar os modelos utilizando abordagens espaço tempo, projeção para o passado e utilização de sistemas experimentais.

Esta última abordagem é permitida em virtude do extenso sistema de mesocosmos aquáticos que o meu laboratório instalou em diferentes localidades da Península Ibérica com o incansável esforço e liderança do Miguel Matias, cobrindo um extenso gradiente de temperatura e aridez, e que tem sido amostrado regularmente usando metodologias de amostragem tradicionais combinadas com metodologias de ADN ambiental.

Da aterragem no mundo real

Tal como um investigador em ciências biomédicas não se consegue desligar do seu objeto de estudo (a saúde dos pacientes), um investigador em ciências ambientais terá sempre dificuldade em não se preocupar com o resultado da ação humana na saúde dos ecossistemas planetários. Recentemente, estas duas noções de saúde foram fundidas no conceito “One Health” e já existem revistas centíficas dedicadas à interceção entre saúde humana e planetária.

Depois de duas décadas em investigação fundamental e aplicada em matérias relacionadas com alterações climáticas e biodiversidade, pretendemos contribuir para acelerar a transferência de conhecimento científico acumulado para a sociedade por via de projetos de comunicação e síntese assim como de intervenção nas áreas da conservação da biodiversidade e/ou da adaptação às alterações climáticas.

Exemplos destes incluem o estudo que o laboratório lidera, para o Ministério do Ambiente e Ação Climática, no sentido de contribuir para a definição de objetivos políticos na área da biodiversidade em Portugal, no horizonte 2030 e o projeto piloto Além Risco financiado pela EEA Grants, com cofinanciamento da Fundação Calouste Gulbenkian e da Comunidade Intermunicipal do Alentejo Central, que visa introduzir o conceito de espaços verdes resilientes às alterações, plantando 50,000 árvores em aglomerados urbanos usando metodologias e tecnologias de baixo impacte, inovadoras, com potencial de demonstração para aplicação noutros territórios quentes e secos.